O diretor Wolfgang Becker é um dos grandes nomes do cinema alemão moderno. Ele ficou conhecido pelo filme Good Bye Lenin! Das Leben ist Eine Baustelle, no Brasil recebeu o legítimo nome de A Vida é um Canteiro de Obras. Pelo título, podemos presumir uma das mensagens desta produção de 1997 lançada cinco anos antes de Good Bye Lenin! O filme se mostra interessante, tocando em temas como o problema das pessoas em se comprometerem e o medo da Aids em uma sociedade movimentada pelo rock’n roll e pelas manifestações de rua. E de quebra, ele apresenta uma história de amor acidentada com um duo de atores bastante carismáticos – Jürgen Vogel e Christiane Paul, que voltariam a fazer um casal no recentemente comentado Die Welle.
Inverno em Berlim. Manifestantes e policiais se enfrentam em um combate de rua enquanto Jan Nebel vai para seu trabalho em um frigorífico. Quando ele avista dois homens que perseguem uma jovem mulher. Ele nem imagina que o dois homens são policiais à paisana. E aquela noite trará consequências sombrias para Jan começando com uma alta multa em dinheiro, a perda de seu emprego e, talvez, do seu grande amor. Pela manhã, ele descobre que sua amada sumiu.
Jan mora na casa de sua irmã Sylvia, que tem uma filha e um namorado, de quem a filha não gosta. A vida familiar destroçada parece uma doença hereditária. Seus pais se divorciaram há muito tempo, mas de vez em quando Jan visita o pai e os dois costumam jogar xadrez. Um dia, Jan aparece na casa do pai para pedir-lhe uma ajuda financeira, ele o encontra sentado, imóvel na mesa da cozinha, com o rosto sobre o prato e a televisão ligada. Mais tarde, Vera, com quem ele tinha um encontro, e Jan fazem uma espécie de velório para o pai morto durante toda a noite.
Para Jan, as coisas vão de mal a pior. a morte do pai, o desemprego e o risco de ir para a cadeia se não pagar a multa não são seus únicos problemas. O namorado de Moni, com quem Jan também já dormira uma vez, está com Aids, mesmo assim, Jan adia o quanto pode seu teste de HIV. No entanto, pode ser que toda catástrofe tenha seu lado bom. Em seu último dia no frigorífico, Jan ganha um novo amigo. No confronto com a policia, conheceu Vera. Com a morte do pai, tem agora um apartamento próprio e, talvez, medo da Aids o faça ordenar melhor a própria vida.
A Vida é um Canteiro de Obras deve ser entendido de maneira programática: trata-se de conceitos de uma vida ainda em processo de formação, de um constante reagir a danos, de correções de projetos provisórios e de situações de fragilidade cotidiana. As imagens de canteiros de obras que mostram no passar da sequência do filme têm valor simbólico. Os personagens do filme ainda não conseguem lidar com o mundo que lhes parece sempre inóspito para poderem estabelecer-se em longo prazo. Muito além de uma comédia, o filme de Wolfang Becker revela o sentimento de vida de uma jovem geração alemã na segunda metade dos anos 90.
°m Das Leben ist eine Baustelle, o diretor realiza uma proeza que era apenas encontrado no cinema inglês. Uma história sobre miséria material e psíquica, sobre perda da pátria e tristeza, mas que não demonstra lástima e, ao mesmo tempo, a enérgica insistência nos tons cômicos não ameniza a gravidade da situação, Opõe-se ás circunstâncias e lhes oferece resistência,
O fato da encenação no decorrer do filme também apelar, vez por outra, para recursos drásticos. Sendo isso necessário pra transmitir aquele drama para o telespectador. Seja quando se trata de sexo, trabalho ou morte, também deve ser entendido como protesto contra a ingenuidade e a inocência das produções planas que é uma das características do cinema alemão dos anos 90, que tentavam abrandar os conflitos iniciantes. O filme A Vida é um Canteiro de Obras tem aquela coragem de provocar uma coragem que caracterizou a geração do Novo Cinema Alemão nos anos 70.
A própria facilidade com que o inocente Jan entra em conflito com a polícia e é condenado, deve irritar parte do público. Quase que de passagem, Wolgang Becker também fala da decadência da televisão em uma cena durante o filme na qual apresenta um programa um programa de TV no qual os candidatos têm de adivinhar o título de filmes de horror a partir dos gritos das vítimas, ou um concurso de talentos absolutamente idiota. Mas ele fala, principalmente, de relações sexuais ligeiras, da completa dissolução das estruturas familiares, do desemprego, de problemas de habitação e do medo da Aids. Os sinais da doença estão de uma forma onipresente nesse filme. O mundo oposto, com seus hotéis de luxo, suas lojas caras, ou o bufé um Congresso Médico sobre a dor. Já está fora do alcance de Jan. Só Vera continua a ultrapassar os limites, sem nenhum receio. Ela também estimula Jan a saber se está contaminado pelo vírus da Aids.
A chegada da jovem grega que vagueia pela cidade à procura do irmão, mostra claramente como Wolfgang Becker e seu coautor sobrecarregaram sua história com um volume de problemas astronômico. Principalmente na segunda do filme, essa sobrecarga bloqueia um pouco o fluxo da narrativa. Porém, sua continuidade é garantida graças aos intérpretes extraordinariamente presentes, cheios de vitalidade e diversas faces. E é essa a capacidade do diretor de lidar com cenários. A vida é um Canteiro de Obras também esboça uma imagem de lugares desconhecidos da cidade de Berlim, É o diagnóstico de uma doença, cheio de contradições e, pro isso mesmo, também cheio de vida.
A Vida é um Canteiro de Obras começa na rua e termina em um bonde, desenvolvendo entre essas duas cenas uma história de acasos e encontros casuais. E os casos não são grandes encontros cinematográficos, ao contrário, são pequenos e fortuitos, mas tem grandes efeitos. Logo nas primeiras cenas do filme vemos Jan de calça de veludo, jaqueta jeans, com uma bolsa a tiracolo perambulando por um bairro de prédios antigo. Sirenes, policiais e manifestantes correm pelas ruas e há saques. De repente, aparece uma jovem mulher, o nome dela é Vera e, está sendo perseguida por dois homens. Jan, logo imobiliza os dois e logo começa uma fuga pelas ruas, quintais, escadarias, etc. Um menino fantasiado de super-homem ajuda os dois, escondendo-os no apartamento dos pais, mas mesmo assim Jan é pego pelos homens que na verdade eram policiais a paisana. Assim. ele não só é obrigado a passar a noite na delegacia, como também a pagar uma multa alta, falta ao trabalho sem justificativa e acaba perdendo o emprego.
Jan parece ser uma pessoa que ainda não encontrou seu lugar na vida. Ele é açougueiro, mas, não tem emprego fixo e vive com sua irmã que vende lingerie e a maior parte de seus bens está na bolsa a tiracolo que ela carrega por todo lugar. Na realidade, a única estabilidade na sua vida é Jennifer, Jenni, sua pequena sobrinha, de quem ele cuida e por quem ele tem um grande carinho.
Jan Nebel se deixa levar pela vida e a vida o leva. Quando recebe o último pagamento, seu amigo Buddy o ajuda para que ele não seja pego roubando alguns filés. Buddy é fã da música de Buddy Holly e ambos se deparam com a grega Kristina, que procura o irmão. E por acaso Jan reencontra Vera fantasiada de Papai Noel em um supermercado, cantando canções de Natal. Os dois combinam um encontro e inicia-e uma história de amor maluca. Eles participam clandestinamente de uma conferência de médicos para comer do bufê e saem de um hotel de luxo sem pagar. É um amor entre diferentes classes sociais e níveis de educação, Pois ele é um açougueiro e ela é graduada em música e atuando em performances. Com Jürgen Vogel e Christiane Paul, Wolfgang Becker encontrou o elenco ideal: ele com uma corporeidade um tanto frágil, ela, uma mulher misteriosa e sem compromisso, Pois assim como Vera inicialmente surgiu do nada, ela desaparece periodicamente. Vogel e Paul conseguem interpretar cenas sérias, mas com leveza sem igual em se tratando de comédias alemãs.
Neste filme, cada pessoa tem o seu segredo. Temos Vera, que deixa mensagens em um gravador e sai da cama de manhã de mansinho. Há Jan, que é possivelmente HIV soropositivo. O filme nos obriga a ver o mundo com os olhos dos personagens e há muitos poucos momentos nesse filme nos quais o espectador sabe mais que os personagens. Becker usa esse recurso para gerar confusão no espectador, por exemplo, quando Vera está sentada em um hospital e não sabemos por quê, Becker chega até mesmo ao ponto de nem sempre divulgar os assuntos discutidos pelo casal. Em uma cena, Jan persegue Vera e descobre que ela mora com outro homem. Ele conversa com ela e decidem compartilhar seus segredos para ganhar confiança. Nesse momento. Becker muda de cena, deixando seus personagens a sós.
O filme A Vida e um Canteiro de Obras se passa em Berlim, uma cidade em que no ano de 1997 era um grande canteiro de obras. Mas o filme não explorar Berlim em suas vistas de cartão portal dos bairros nobres e dos pontos conhecidos. O filme nos mostra a torre de televisão da antiga Berlim Oriental, uma ponte, uma fábrica antiga. No mais, tudo se passa nas ruas tristes e cinzentas dos bairros antigos. Nenhum outro filme alemão retratou o ambiente dessas ruas, seus apartamentos e os habitantes com tanta atenção e autenticidade.
Das Leben ist eine Baustelle "A Vida é um Canteiro de Obras" é um filme sobre coisas tão banais como dinheiro, morte, emprego, procura por apartamento e amor. São retratos momentâneos da vida que em alguns personagens se densificam, criando um caráter, em outros não. Se quiséssemos descrever a narrativa desse filme e a atitude em face dos seus personagens por duas horas e mesmo assim não sabemos tudo sobre eles, nem o que será deles. Como em um canteiro de obras, que nos permite ter uma leve noção de como será o prédio.
Fonte: EPD Film, Frankfurt, nº 3, março de 1997.
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